quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

“A Comédia do Poder”: Podres poderes



Quem acha que a cumplicidade entre empresários inescrupulosos e dirigentes estatais gananciosos é coisa do Terceiro Mundo deveria dar uma olhada em “A Comédia do Poder”, filme do mestre francês Claude Chabrol. Ele pega o caso de corrupção da Elf Equitane, empresa petrolífera francesa, ocorrido nos anos 90, e o transforma numa radiografia do comportamento da alta burguesia de seu país. Sem escrúpulo algum, ela usa recursos públicos para aumentar sua conta bancária, com a parceria de gestores estatais. Estes vão do Executivo, Judiciário e Legislativo, com a mesma desenvoltura registrada em países tidos normalmente como exemplo da falta de transparência nos negócios públicos. Mas, para não deixar de fora qualquer análise mais séria, trata-se, na verdade, das relações capitalistas num país desenvolvido, onde a classe dirigente trata as finanças publicas como extensão de seus próprios negócios.

Em “A Comédia do Poder” ela é mostrada em toda a sua extensão, no processo conduzido pela juíza Eva Joly contra os altos gestores da poderosa Elfe Equitane. Chabol, cheios de nuance, ironia e paródia, muda os nomes reais dos envolvidos e os transforma em personagens calcados de tal forma na realidade, que fica difícil não identificá-los. No filme, a investigação é empreendida pela juíza Jeanne Charman-Killman (Isabelle Huppert) contra Michel Humeau (Françóis Borléand), presidente de uma estatal francesa, acusado de desvio de fundos, fraudes e corrupção. Meticulosa, incisiva e disposta a não recuar, ela inicia a fase de depoimentos ouvindo os principais envolvidos, sem atacá-los. Quer saber apenas o que cada um fez, sem culpá-los, a princípio.

Mas, à medida que o processo avança, eles mesmos vão se inculpando, abrindo veredas, que ela persegue para preencher os espaços vazios. Desta forma, Chabrol nos alerta, para uma verdade: não é quem investiga que descobre o grau de envolvimento do acusado, mas é este, na ânsia de ocultar os fatos que o incriminam, que dá as pistas a serem checadas. São ilustrativos deste alerta, os diálogos de Jeanne Killman com os subalternos de Humeau e depois com o próprio. Eles não respondem ao que ela indaga, deixa-lhe, assim, a possibilidade de enxergar para além deles. Ela o faz, chegando inclusive a um seu conhecido, aquele que a ajudou em certo momento de sua carreira. Os dois conversam, ele espera que ela não desmonte o castelo criado por ele junto, principalmente, com Humeau.

Cumplicidade entre empresários e Judiciário guarda semelhança com o caso ocorrido no Brasil

Entende-se que o Judiciário, em certo instante, ocupa espaço próximo aos demais poderes. E pode tirar proveito, em seu benefício, das artimanhas dos envolvidos nas teias da corrupção. Esta proximidade cria condições para a sedução, a promiscuidade, a queda para as facilidades que resultam na participação do Judiciário na estrutura de corrupção. Qualquer semelhança entre empreiteiros e juízes na construção do Tribunal Regional de Trabalho de São Paulo não é mera coincidência. Nestas esferas, para que as fraudes ocorram a contento, sem punição, é necessária cumplicidade total. Jeanne Killman, no entanto, não se deixa seduzir. Ela enfrenta Humeau à altura do exigido. Diz-lhe, com todas as letras, quem ele é. Cumpre com sua obrigação, levando o público a respirar aliviado. Neste momento, ela é o poder absoluto, o único que pode bloquear a continuidade da sangria nos cofres públicos.

Chabrol, ironicamente, corta numa dessas seqüências, para a reunião entre o “amigo” de Jeanne Killman, Mumeau e outros envolvidos. Eles discutem o impasse a que chegaram diante da insistência dela de levar o caso adiante, com uma tenacidade digna de quem sabe qual é seu papel na estrutura de estado. O ambiente da reunião é um clube, freqüentado pela alta burguesia francesa. Descontraído, com bebida e conversa solta. Chabrol torna-a, aos poucos, numa daquelas reuniões de mafiosos, discutindo como eliminar quem os impede de continuar a praticar o crime. Toda a dignidade que procuram manter cai por terra. Eles são ali criminosos tramando contra a justiça, não a justiça como estrutura de poder, mas como espada sobre suas cabeças, levantada pela supostamente frágil juíza Jeanne Killman.

Ver os agentes da corrupção nas altas esferas como criminosos torna-se uma boa contribuição de Chabrol, para casos dessa natureza. Não há forma de vê-los de outra forma. Só que estamos nas relações de poder, onde cada um ocupa o espaço delegado por outro, que está degraus acima do seu. E Jeanne Killman deve explicações e deve seguir orientações de seu chefe. E este, como sempre ocorre nas instâncias de poder, freqüenta as mesmas rodas que os acusados. Ela, então, se vê num impasse, continuar as investigações ou ceder às pressões que vêm agora de todo o lado. Inclusive de suas relações familiares. Herdeira de um nome pomposo e de alta classe, ela, com o caso, passa a se dedicar mais a ele do que ao marido Philippe Charmant-Killman. Seus únicos momentos de relaxamento são quando trocas amabilidades com o sobrinho Félix (Thomas Chabrol) na cozinha.

Chabrol não vê saída na relação entre a juíza e seu marido, opta pela tragédia


Esta junção de vida profissional e vida familiar estabelece um conflito comum nos filmes modernos. O personagem tem que optar por um ou outro. Caso contrário; ambos sairão sacrificados. Com Jeanne Killman o caso se agudiza. O marido, deixado em segundo plano, cai na derrisão, quando deveria ajudá-la a combater os adversários. Não compreende o que se passa, comporta-se como alguém que precisa de toda atenção, para manter sua auto-estima. Uma critica, sem dúvida, ao objeto que se transforma o homem, quando a mulher ocupa posição de estaque. Não que Chabrol faça critica feminista ou mergulhe seu filme num combate de gêneros, mas se presta a uma nuance sobre as relações homem/mulher hoje.

Se antes era a mulher que cobrava presença do marido, pressionando-o para encontrar mais tempo para ela, agora é o homem que o faz. Chabrol parece não encontrar saída, um equilíbrio que os leve ao entendimento. Prefere a tragédia. Jeanne Killman, ainda que forte e decidida, tem seus instantes de fragilidade, de ver sua relação amorosa sofrer uma queda, ao mesmo tempo em que seu trabalho recua. Este é um recurso dramático do qual Chabrol e seu co-roteirista, Odiel Barski, lançam mão. E mantidas as devidas proporções é o mesmo recurso usado pelos filmes de suspense, do qual ele é mestre incontestável, para mostrar a queda do herói, que se reergue logo à frente. Faz, sem dúvida, o filme andar. O público torce para que Jeanne Killman vença a batalha contra Humeau, mas também resgate seu casamento. Mas, como estamos num filme de Chabrol, os clichês logo são jogados às traças.

A cumplicidade entre as altas esferas de poder, em que cada um deve favor ao outro, se impõe. O esforço de Jeanne Killman é ameaçado. Seu superior lhe opõe a assistente, Erika (Marilyne Canto), igualmente competente, mas sujeita às influências e as possibilidades de ascensão que lhes são apresentadas. Transforma a puxada de tapete num conflito entre ela e Erika. Um meio de continuar o processo, de forma lenta, sem levá-lo às últimas conseqüências. Há, diz Chabrol, sempre alguém que se presta a este jogo. As feridas ficam, sem dúvida, para quem achava que é possível romper estruturas. Jeanne Killman porta-se à altura desse impasse. Manter-se íntegra é seu propósito. Chabrol não a transforma numa vítima. Ao estruturar o filme em várias camadas, ele escapa ao derrotismo. A pena para os implicados não é apenas enquadrá-los, enjaulá-los, mas expô-los à opinião pública.

Filme de Chabrol lembra dramas políticos italianos da década de 70


Este, aliás, é o grande ganho nesses casos de corrupção, a exposição dos implicados, ainda que no final, eles escapem ilesos. Desnudam-se as entranhas do poder, mostra-se o que lá ocorre, quem são os que manipulam os cordéis e o que deles fazem. “A Comédia de Poder” é um filme-denúncia mesclado a drama familiar e relações de poder, tipo de obra comum nos anos 70. Época dos dramas políticos italianos, de Damiano Damiani (Confissões de um Comissário de Polícia ao Procurador da República), Francesco Rossi (Cadáveres Ilustres) e Elio Petri (Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita), hoje deixados de lado, dada a preferência pelos filmes-espetáculo infanto-juvenis. Porém, a “A Comédia de Poder” mexe com tema atual, da corrupção institucionalizada.


Chabrol, ao se debruçar sobre a vida familiar de Jeanne Killman, foge ao padrão desses citados filmes. Eles se fixavam apenas nas podres relações do poder. Ele, não, amplia sua visão do papel reservado à mulher; ocupada em travar uma luta à altura dos desafios que o momento histórico lhe reserva. Não cai, entretanto, na vala comum de colocá-la como salvadora de ética e da justiça, pois a seu lado há outra mulher, a juíza-assistente Erika que se presta às artimanhas do poder, a serviço de corrupção. Deixar de lado o maniqueísmo torna “A Comédia do Poder”, mas eficiente. Muitas armadilhas esperam quem busca recompor as estruturas de poder. O título francês, “L´Ivresse du Pouvoir” (Embriaguez do Poder), diz mais sobre o que ele, Chabrol, aborda, do que chamar as tramóias da alta esfera de poder, de comédia. O riso que pode sair daí é amarelo, um amarelo carcomido pela carência de criatividade.

Por outro lado, faz bem tornar públicas as mazelas do poder no 1º Mundo, pois tira de países como o Brasil, a chancela de ser pátria das fraudes, da corrupção e do ganho fácil. Ainda que os personagens transitem, ao contrário, dos corruptos de “Tropa de Elite” em ambientes luxuosos, vistam-se bem e tenham alto padrão de vida. Merecem a danação dos corredores penitenciários e os cubículos dos presídios. Chabrol mescla, em “A Comédia do Poder”, ingredientes suficientes para que o público compreenda como eles se infiltram nas estruturas e delas subtraem o que lhes interessam, sob a capa de muita respeitabilidade. Em dado momento, ele, com a contribuição da atriz Isabelle Huppert, transita do filme político para o de suspense e deste para o drama, sem perder os meandros da história.

Personagens escondem mais que revelam sobre suas ações


É, dos mestres da Nouvelle Vague, aos 77 anos (nasceu em 1930), o único com freqüência nas telas. Seus filmes penetram, sem cerimônia, nas intimidades da burguesia e as revelam em sua integridade. Não é dado às elaborações técnicas, à vanguarda, igual a Jean Luc Goddard, tem, no entanto, uma leveza, que torna suas obras atrativas. Assim, “A Comédia do Poder” pega um fato, corriqueiro nos dias atuais, e o amplia. Tem-se a sensação de que os personagens escondem mais que revelam. Não são, porém, inocentes. Está na face de Humeau que ele carrega nas costas pesados fardos de moeda - e no rosto do magistrado-chefe de Jeanne Killman, que ele é seu cúmplice, menos por ter participado de seus atos, mais por querer, como sempre ocorre, transparecer que o equilíbrio do poder se dá esquecendo desvios e escorregadelas dos altos dignatários.

Opção esta difícil de aceitar, dada suas conseqüências, aí, sim, para a justiça exercer seu papel. Coisa quase impossível na estrutura capitalista que se alimenta, é verdade, desse equilíbrio deverás delicado. Assistir a “A Comédia do Poder” transforma-se, assim, numa maneira de enxergar as contradições atuais como inerentes ao sistema e não uma recaída de um ou vários de seus pares. Para Jeanne Killman, embora o preço tenha sido alto demais, fica a imagem de quem enfrenta as rupturas nas estruturas de poder, mas pode fazer pouco por sua correção. Os caminhos alternativos ao que Chabrol apresenta, ficam a cargo do espectador. Ele, enfim, é o real juiz dessa embriaguez do poder.


“A Comédia do Poder” (L´Ivresse du Pouvoir”). Drama. França. 2006. Duração: 110 minutos. Roteiro: Odiel Barski e Claude Chabrol, baseado no “Affaire Elf”. Diretor: Claude Chabrol. Elenco: Isabelle Huppert, François Borléand, Marilyne Canto, Thomas Chabrol.

*Cloves Geraldo, Jornalista

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